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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O HOMEM DO LIXO

A mulher senta-se pesadamente no banco e coloca uma sacola cheia de coisas sem valor entre os pés. Apoiando os cotovelos nos joelhos e o rosto nas mãos, ela observa a calçada. Em seu corpo, tudo dói. Costas, pernas, pescoço. Seus ombros estão rijos e sua mãos, esfoladas. Tudo por causa da sacola.
Oh! se ao menos pudesse se livrar desse lixo.

Nuvens compactas constroem um céu cinzento, cinzento com mil sofrimentos. Prédios sujos de fuligem lançam longas sobras que escurecem as calçadas e as pessoas que nelas caminham. A garoa resfria o ar e enlameia a enxurrada que corre pelas sarjetas. A mulher envolve-se em seu casaco. Um carro que passa encharca a sacola e espirra água em seu jeans. Ela não se move. Está cansada demais.
Suas lembranças de uma vida sem sacolas são indistintas. Quando era crianças, talvez ? Suas costas eram mais retas, seu andar mais rápido... ou isso é um sonho ? Ela não tem certeza.

Passa um segundo carro. Pára e estaciona. Dele desce um homem. Ela observa que seus pés afundam na lama. Do carro, ele retira uma sacola cheia e pesada de lixo, e a coloca em seus ombros, xingando o peso.
Nenhum deles diz uma palavra. Ela nem sabe se ele percebeu sua presença. Seu rosto parece jovem, mais jovem que suas costas encurvadas. Num momento o homem desaparece. E o olhar da mulher torna a fixar-se no chão.
Ela nunca olha para o seu lixo. Mas em outro tempos sim. Porém o que via a repugnava, por isso agora sempre deixa a sacola fechada.
Que mais pode fazer ? Dar de presente a alguém ? Todos têm a sua própria sacola de sofrimentos.

Agora aparece uma jovem mãe. Com uma das mãos ela leva uma criança, com a outra carrega seu fardo, sacolejando pesadamente. E também um velho com a face sulcada de rugas. Sua sacola de lixo é tão comprida que balança sobre suas pernas quando caminha. Ele olha para a mulher e tenta sorrir.
Qual peso estaria carregando ?, ela imagina ao vê-lo passar.
"Tristeza."
Ela se vira pra ver quem falou. Ao seu lado, no banco, um homem havia se assentado. Alto, com feições angulares e brilhantes, e os olhos bondosos. Seu jeans também está manchado de lama. Todavia, seus ombros, ao contrário, são retos. Ele veste uma camiseta e um boné de beisebol. Ela olha em volta, mas não vê se Ele também carrega uma sacola de lixo.

Ele observa o velho que se afasta e explica: "Quando era um jovem pai, ele trabalhava durante muitas horas e negligenciava a família. Seus filhos não o amam. Sua sacola está cheia, cheia de tristeza e remorso".
Ela na responde. Por isso, Ele continua.
"E a sua ?"
"A minha ?", ela pergunta.
"Vergonha", o homem diz, cheio de pena.
Ainda assim ela se cala, mas também não se afasta.
"Muitas horas nos braços errados. No ano passado. Na noite passada... vergonha."

Seu corpo se endurece, como se fosse de aço contra o escárnio que havia aprendido a esperar. Como se precisasse sentir mais vergonha. Faça-o se calar. Mas como ? Ele aguarda o seu julgamento. No entanto, isso nunca acontece. Sua voz é doce e sua pergunta é sincera: "Não quer me dar o seu lixo ?"
A mulher inclina a cabeça para trás. O que Ele está dizendo ?
"Dê seu lixo para mim. Amanhã. Lá no lixão. Não deixe de trazê-lo."
Ele limpa um pouco de chuva da face da mulher, esfrega o dedo e se levanta. "Sexta-feira. No lixão."
Ela continua sentada, muito tempo depois que Ele partiu, recordando a cena, tocando a face. Sua voz ainda persiste, seu convite paira no ar. Ela tenta esquecer suas palavras, mas não consegue. Como esse homem poderia saber tudo aquilo a seu respeito ? E, como podia saber, e continuar sendo tão gentil ? Sua lembrança se acomoda no íntimo de sua alma, como se fosse de um hóspede inesperado, porém muito bem-vindo.

O sono daquela noite lhe trouxe sonhos de verão.
Uma jovem sob um céu azul e nuvens de algodão brincava entre flores silvestres e sua saia rodopiava. Ela sonha que estava correndo com as mãos bem abertas tocando na corola dos girassóis. Ela sonha com pessoas felizes enchendo o prado de risos e esperança.
Entretanto, quando acorda, vê que o céu está escuro, as nuvens cresceram e as ruas se cobriram de sombra. Ao pé da cama, permanece sua sacola de lixo. Coloca-a sobre seu ombro, deixa o apartamento e desce as escadas em direção à rua, ainda escorregadia de neve derretida.
É sexta-feira.

Durante algum tempo ela fica parada e pensativa. Imaginando primeiro o que Ele queria dizer e, depois, se realmente tinha essa intenção. Ela suspira. Com um fio de esperança que quase ofusca seu desânimo, ela caminha em direção à periferia da cidade. Outras pessoas também estão caminhando na mesma direção. O homem ao seu lado cheira a álcool. Ele der dormido muitas noites com a mesma roupa. Uma adolescente caminha alguns passos à sua frente. A mulher da vergonha corre para alcança-la. A jovem se oferece para responder antes que qualquer pergunta tenha sido feita: "Ódio. Ódio do meu pai. Ódio de minha mãe. Estou cansada de sentir ódio. Ele disse que iria tirar esse ódio de mim." E mostra a sacola. "Vou levá-la para Ele."
A mulher acena com a cabeça e as duas caminham lado a lado.

O local está coberto de lixo — papéis, vassouras quebradas, camas velhas e carros enferrujados. Ao chegarem à colina, a fila até o topo é muita comprida. Centenas de pessoas caminham à frente das duas mulheres e todas esperam em silêncio, alarmadas com o que ouvem — um grito, um bramido cheio de dor que flutua no ar por momentos e apenas se interrompe com um gemido. Depois, o grito volta novamente. O dEle.

Ao se aproximarem, passam a entender a razão. Ele se ajoelhou perante cada um, aponta para a sacola, faz um pedido e depois uma oração. "Posso pegar a sacola ? Tomara que você nunca mais volte a carregá-la." Em seguida, o homem curva a cabeça, levanta a sacola e derruba seu conteúdo sobre si mesmo. O egoísmo do glutão, a amargura do irado, a neurose de posse do inseguro. Como se tivesse mentido, enganado ou ofendido o Criador, Ele passa a sentir o mesmo que as outras pessoas sentiam.
Quando chega a sua vez, a mulher pára um momento. Ela hesita. Os olhos do homem a convidam a ir adiante. Ele estende a mão e se apodera de seu lixo. "Você não pode viver com isso." "Você não foi feita para isso." Com a cabeça baixa, Ele derruba toda a vergonha sobre seus próprios ombros. Em seguida, olhando para o céu, com olhos inundados de lágrimas, Ele grita: "Me perdoe".
"Mas você não fez nada", ela exclama.
No entanto, Ele está soluçando como ela havia soluçado em seu travesseiro uma centena de noites. Foi então que entendeu que o pranto desse homem representa o seu próprio pranto. Sua vergonha passou a ser dEle.
Com um dedo ela toca a sua face e, no primeiro passo em uma longa noite, não tem mais nenhum lixo para carregar.
Junto aos outros ela se coloca aos pés da colina e observa enquanto o homem é enterrado sob um monte de tristezas. Durante algum tempo Ele ainda geme. Depois... nada. Somente o silêncio.

As pessoas se acomodam entre carros quebrados, papéis e fogões descartados e imaginam quem seria esse homem e o que acabou de fazer.
Como carpideiras numa vigília, elas se demoram. Algumas contam histórias, outras se calam. Todas lançam olhares furtivos ao lixão. Parece muito estranho ficar andando naquela montanha de entulhos. Contudo, parece ainda mais estranho pensar em ir embora.
Portanto, elas permanecem ali. Atravessam a noite até o amanhecer. A escuridão vem novamente. Uma corrente de amizade se estabelece entre elas, uma amizade que se formou através do homem do lixo. Algumas adormecem, outras acendem uma fogueira nos tambores de metal e falam sobre uma repentina abundância de estrelas no céu daquela noite.
Pela madrugada, todos dormem. E quase deixam escapar o momento. É a jovem que vê primeiro. A jovem que fora cheia de ódio. A princípio, não acreditava no que vê, mas quando repara melhor, logo compreende.

As palavras dela são suaves e não são dirigidas a ninguém em particular... "Ele está de pé."
Depois, ela grita bem alto para a sua amiga: "Ele está de pé".
E então, para todas as outras pessoas: "Ele está de pé!"
Ela se volta; todos se voltam. E todos vêem sua silhueta projetada sobre um sol dourado.
De pé. Sim, é verdade.


O Salvador Mora ao Lado
Max Lucado

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O TEMPO, A MORTE E A VIDA

Hoje quando acordei percebi que o mundo estava diferente de ontem, do tempo da minha infância. O passado ficou para trás. Eu não sou mais o mesmo, as pessoas também não são mais as mesmas, muitas até já se foram. Às vezes dá saudade dos tempos antigos, da fase da inocência. Mas o que preocupa mesmo são os tempos que virão. Se pudéssemos imaginar como seria o futuro descobriríamos que ele nunca chega e que quando nos damos conta ele já passou, e foi tão rápido que não deu tempo nem de vê-lo. Ainda bem! Talvez, se pudéssemos ver ao menos a silhueta dos tempos vindouros o desastre poderia ser maior, pois descobriríamos que o futuro não é como imaginamos. Nunca se sabe o que vai acontecer adiante, pois o mundo não para de girar e o relógio prossegue afoitamente em seu trabalho sem cessar, empurrando os ponteiros que atiram para todos os lados, como setas, nos atingindo com os mistérios do amanhã, enquanto achamos que aprisionamos o tempo em calendários, programando a vida, pré-estabelecendo a rotina, sem saber se o dia de amanhã virá. Será que estamos virando robôs ou não estamos bem programados?

Durante a noite sonhei com a morte, pensei na vida e descobri que ninguém está livre de se encontrar com o seu medo. Descobri que o homem não tem medo da morte, mas do que virá depois dela. O medo do desconhecido torna a vida uma grande produtora de adrenalina que nos arrebata aos pensamentos mais secretos sobre o outro lado da vida e nos torna conscientes de que a fatalidade mora ao lado da prudência e a morte nada mais é do que o embrião da vida, pois quando morremos é que nascemos, e quando nascemos da morte é que vivemos. Mas existe uma condição para que seja assim e ao menos que ela seja desrespeitada, então a morte pode se tornar um monstro intransponível que, mais do que assustar, pode possuir a vida e torná-la extinta por toda a eternidade.

Tentamos dominar o tempo e esquecemos que ele está prestes a ter um fim. Enjaulamos nosso medo da morte no recôndito de nosso ser tentando exonerar a incerteza do que virá com uma fé que muitas vezes não é suficiente para nos trazer a certeza sobre o amanhã e a vida, e esquecemos que no porão de nossa alma existe um monstro maior ainda, que somos nós mesmos. O nosso eu que quer pecar e se satisfazer dos desejos mais repugnantes que se possa desejar, se contrapondo a santidade e a justiça que ainda pode envolver o ser humano. É esse monstro que percebe o tempo acabando e se lança como um animal selvagem sobre o monturo da irracionalidade humana e se alimenta do opróbrio do ser mais importante da criação. Porque somos assim?

A vida é apenas uma experiência que serve para nos moldar a um padrão inexistente nesse mundo. Muitos tentaram com vãs filosofias, dogmas e doutrinas, teorias, misticismo e muitas outras formas, padronizar a vida que nem mesmo eles entendiam. Criaram regras, estabeleceram hierarquias, desrespeitaram o sagrado e mataram uns aos outros, fizeram terrorismo na tentativa de manipular a vida que desconheciam. Não adianta tentar entender, é preciso viver, e viver cada dia como se fosse o único, na busca de compreender a si mesmo, em seu verdadeiro conceito, na plenitude de sua intensidade. A vida está dentro de cada um e nada mais é do que a liberdade da alma de poder, em sua verdadeira essência, experimentar emoções latentes em si mesma.

O mundo quer controlar a vida, a morte quer seu fim e a vida quer somente ser vivida. Ontem eu dormi mais novo e amanheci mais velho. O espelho não me deixa enganado. A agitação da rotina me convence disso e o tempo apenas passa e me leva com ele, como um prisioneiro, acorrentado a ele com passagem só de ida, rumo ao encontro da bendita morte, o fim da gestação de um ser e o início de uma “desconhecida” vida, de um novo indivíduo. Já não penso nas coisas de menino, nem vivo como um. Minha semente já está plantada nessa terra e dará continuidade a vida, a essa vida que eu quero entender... e morrer... e finalmente viver, sem o monstro da morte me perseguindo, sem as incertezas do amanhã.

A vida que foge de nossas mãos é a mesma que nos conduz como cativos do tempo que passou, que vivemos e do tempo que virá. O tempo que queremos controlar é o mesmo que corrói nossa existência, deteriorando o vigor, corrompendo a saúde, e que nos arremessa nos braços da morte. E a morte?! Ah! A morte nada mais é do que a libertação. Deixamos de ser "homens empalhados, almas sem feitio, mentes com falhas" para enfim gozar da plenitude da existência em sua totalidade, experimentando de forma definitiva a integralidade do ser.

Contudo sem interferir no tempo individual, cada um precisa viver seu próprio tempo, pois basta à cada dia o seu próprio mal, deixando nas mãos do Criador o poder de decidir a hora do nascimento para a eternidade ou a morte definitiva de cada indivíduo, sabendo que isso é o resultado de uma escolha feita nessa vida, a de se permitir então ser controlado somente pelo dono do tempo, da morte e da vida. Mas "quando foi que ajoelhamos? Quando foi que chamamos Deus de pai? Na verdade, não somos bons filhos!"