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sábado, 3 de março de 2012

Francis Schaeffer para o Século 21




Na semana passada um dos mais importantes personagens evangélicos do século XX fez o seu aniversário de cem anos: Francis August Schaeffer. Nascido em 30 de Janeiro de 1912 em Germantown, Pennsylvania, num lar completamente secularizado, Schaeffer viria a exemplificar uma espécie nova e, para muitos, incompreensível de vivência da fé evangélica, tornando-se o “apóstolo dos intelectuais”, como foi descrito pela revista Times em 11 de Janeiro de 1960, e para muitos um profeta para o cristianismo do século 21.

Haveria muito o que dizer sobre Francis Schaeffer e o impacto de sua obra hoje, e eu até pretendo fazê-lo em algum momento, mas vamos nos limitar dessa vez a uma pergunta sobre a sua relevância. Schaeffer é, realmente, atual? Vale a pena ouvir de novo sua voz no mundo contemporâneo e no Brasil de hoje?

Essa pergunta tem sido feita frequentemente por estudantes aqui em L’Abri, e acabei descobrindo que em boa parte das vezes ela não vem da cabeça dos próprios estudantes – que via de regra, sentem-se muitíssimo ajudados por Schaeffer. Na verdade o que acontece é que eles leem Schaeffer mas ao citá-lo são “informados” por alguns líderes mais antigos que Schaeffer teria sido “passado” – o que parece ser realmente uma situação muito irônica: os novos considerando Schaeffer “atual”, e os antigos o considerando “ultrapassado”.

Schaeffer Ultrapassado?

Estou com os que consideram Schaeffer crucial para a igreja evangélica brasileira no século XXI, e não se trata de provocação saudosista; na verdade eu mesmo não pertenço à geração de Schaeffer, nem às gerações imediatamente posteriores. Eu acabei de chegar. Mas alguns dos primeiros leitores de Schaeffer, que reconheceram sua atualidade – há quarenta, trinta, vinte anos atrás – agora estão certos de que Schaeffer é passado. “Schaeffer descrevia uma condição ainda moderna, superada pela posmodernidade”, já ouvi. Alega-se que sua ênfase na “verdade verdadeira” (true truth) denuncia uma visão racionalista da revelação, que ele seria biblicista, que tentar misturar religião com tudo seria “integrismo religioso”.

Sem falar em outros problemas: sua explicação da história das idéias no ocidente seria simplista, e particularmente suas críticas ao dualismo de Natureza e Graça em Tomás de Aquino e ao “salto irracional” de Soren Kierkegaard. Com base na redescoberta desses e de outros pensadores ou líderes culturais examinados por Schaeffer, alguns decidem “avançar”, dando “um passo à frente”.

Eu não li Schaeffer quando ele “foi relevante”; eu li agora, ontem. Mas cada vez mais cresce em mim a suspeita de que alguns de seus leitores antigos erraram tanto na compreensão de Schaeffer como da transformação da cultura ocidental na segunda metade do século XX. Quando falava de “modernidade moderna” e do cruzamento da linha do desespero, Schaeffer não descrevia meramente o “fim” da modernidade, mas a nova configuração que começou ali, e na qual estamos mergulhados agora. O que alguns chamam de posmodernidade, mas que é melhor descrito com a expressão “hipermodernidade” é exatamente a realização das profecias de Schaeffer sobre o colapso da identidade humana e a perda da imagem humana, do que o existencialismo foi apenas um estágio inicial.

E tem mais: Schaeffer é relevante para o Brasil. E isso por uma razão até evidente: o evangelicismo brasileiro foi estruturado à imagem e semelhança do evangelicismo anglo-saxônico, trazendo em seu DNA as mesmas fragilidades genéticas de seus pais. Gostando ou não somos herdeiros dos problemas que Schaeffer tentava curar, e agora que chegamos à adolescência no Brasil, a mesma história está se repetindo em nossa pele. E enquanto a teologia evangélica latino-americana não encarar esse fato, ela continuará irrelevante.

Da minha posição de novato nos debates teológicos, confesso não ver sentido algum em um velho teólogo ou líder evangélico brasileiro dizendo que foi ajudado por Schaeffer, quando quase se tornou existencialista e mergulhou no absurdo, mas que agora ultrapassou Schaeffer e tornou-se… existencialista, para todos os fins práticos! Acho que isso seria melhor descrito com a expressão “retrocesso“. Pois nisso o mundo não mudou, não passou por nenhuma revolução: a hipermodernidade continua firme na mesma direção, com a dissolução dos universais, a cristalização de uma cultura de de prosperidade, bem estar e entretenimento, a pulverização individualista do homem, o fortalecimento de instituições de controle para compensar a falta de virtudes compartilhadas, e assim por diante.

A bem da verdade, o mundo mudou com as transformações do sistema de consumo, de informação e de comunicação, principalmente pela internet, mas essas são revoluções dentro da revolução. A verdadeira revolução foi uma mudança espiritual muito maior que teve início no século XIX com o colapso do projeto moderno anunciado pela filosofia, pela literatura e pelas artes e materializado mais recentemente no restante da estrutura das sociedades modernas.

Ainda a “Mannishness”

Sim, preciso dar exemplos. Quero começar com um ponto central das preocupações de Schaeffer: o problema da mannishness, a “hombridade do homem”, ou mais precisamente a sua hominalidade. Segundo Schaeffer seria impossível preservar a imagem humana sem uma relação explícita e vital com o Deus de Jesus Cristo e da história Bíblica. Schaffer argumentou ao longo de suas obras apologéticas, como “O Deus que Intervém”, “O Deus que se Revela”, “A Morte da Razão” e “Como Viveremos”, que a imagem elevada do ser humano acalentada pelo Renascimento do século XIV era derivada do cristianismo, e que ao recusar a necessária conexão entre essa imagem humana e a imagem divina em nome da autonomia absoluta, o homem moderno fracassaria – como de fato fracassou - em manter a dignidade do homem. No século XIX teria emergido claramente a contradição moderna entre a visão do homem como uma máquina, fruto de processos naturais impessoais e objeto de manipulação tecno-científica, e o ideal de homem como indivíduo livre, capaz de se autodeterminar e de expressar a si mesmo na arte e na moralidade.

 O problema, segundo Schaeffer, é que o homem, ou é máquina impessoal, ou é pessoal e livre. Sendo comprometido, por um lado, com a visão moderna e cientificista de que o universo é essencialmente impessoal (com o propósito de afirmar autonomia frente à religião), mas ao mesmo tempo sentindo, desejando e afirmando em si mesmo a sua transcendência pessoal e sua liberdade em relação à natureza (afinal, a imagem divina continua presente nele), o homem moderno entrou em colapso, “deu tilt”, por assim dizer. Ele segue dois comandos contraditórios. E a solução escolhida no século XX foi “cruzar a linha do desespero” e dar o “salto irracional”. Como? Procurando encontrar o sentido da vida em algum tipo de experiência emocional, ou sensorial, ou numa expectativa utópica sem conexão com a racionalidade. A espiritualidade continua presente, mas separada do campo da “razão”, e ao mesmo tempo sendo manipulada por uma elite que emprega uma racionalidade instrumental.

O homem moderno – e agora, hipermoderno – vive portanto uma contradição: sua visão da realidade nega a existência de liberdade, verdade e significado, mas ainda assim ele se lança em busca de experiências que produzam algum tipo de significado e uma confirmação de que ele é alguém. O problema é que essas experiências não são avaliadas segundo um padrão de verdade; assim todo tipo de experiência é considerado uma alternativa viável, desde uma igreja evangélica a uma balada, de um investimento no esporte ao consumo de drogas. Minha esposa teve uma professora na faculdade que era espírita e marxista roxa, e ela não era uma exceção.

Agora a pergunta: o que mudou? Não é verdade que o homem está cada vez mais alienado de si mesmo, e que o valor singular da pessoa humana é simultaneamente afirmado (na política dos direitos humanos, na educação, no cinema, no entretenimento secular e religioso, no ideário político professo) e sistematicamente negado (no individualismo atomizante das políticas de direitos humanos, no reducionismo das hard-sciences, no sistema do capitalismo de consumo, na nova bioética, e no “entretenimento cult”)?

Ainda a “Linha do Desespero”

Vários desenvolvimentos mais recentes no campo das artes, do entretenimento, da política, da moralidade pública e da economia confirmam o quadro pintado por Schaeffer. Na academia, por exemplo, a contradição entre o naturalismo determinista e o construtivismo social e antropológico em diversas ciências humanas continua viva como sempre (e a propostas para superação dessa lacuna continuam na ordem do dia). Vide a polarização entre a interpretação sociobiológica do humano e as abordagens feministas e a teoria Queer no estudos de gênero e sexualidade. Na política temos o esforço do Estado em ampliar e proteger os direitos individuais, ao mesmo tempo em que a vigilância e o controle estatal sobre a sociedade aumenta – um aspecto do processo de atomização social tão bem descrito por Charles Taylor. Exemplos disso poderiam ser apontados e cada área da vida moderna.

Mas em poucas áreas termos evidência mais clara disso do que no campo do entretenimento hipermoderno. Um exemplo particularmente interessante para mim são as novas megafestas, ou neofestas, como a Tomorrowland, Sensation (Skol Sensation no Brasil), Creamfields, entre outras. O caso da Sensation (cf. o link: http://www.youtube.com/watch?v=vIuRrG-ZCDY) é emblemático: o nome é muito direto, e também o programa das festas, com narradores e vinhetas destinadas a afirmar a possibilidade de transformação humana, autotranscendência, unidade humana e paz por meio de uma experiência de liberação das pulsões mais fundamentais. Mas em cem por cento dos casos, essas experiências são produzidas por meio de recusos altamente técnicos. E que isso aconteça ao mesmo tempo em que o neoateísmo cresce no mundo é uma clara confirmação de que as tensões e tendências apontadas por Schaeffer estão cada fez mais definidas e influentes no mundo.

E o mesmo não acontece no interior do movimento evangélico? O cultivo da espiritualidade é quase totalmente associado com experiências de sensação e excitação de massa, e ao mesmo tempo – de fato ao mesmo tempo! – boa parte dos novos líderes orgânicos do movimento evangélico emprega abordagens tecnicistas para lidar com o desespero de seu público; e os mais intelectualizados acolhem interpretações modernizantes do cristianismo, abandonando elementos fundamentais da fé evangélica como a crença na autoridade bíblica, na soberania de Deus, na necessidade da expiação substitutiva, ou até mesmo seguindo opções absolutamente incompatíveis com a fé evangélica, como o sistema de Paul Tillich, idéias libertárias e anarquistas (sejam elas de esquerda ou representantes do anarcocapitalismo), ou as velhas, insistentes e impossíveis sínteses de cristianismo e marxismo.

A aceitação dessa ruputra doentia entre verdade e esperança, ou entre racionalidade e experiência religiosa deixa à mostra a condição de desespero, de todos nós, incrédulos e crentes, no princípio do século XX. Todos sofrem de uma terrível e idêntica ansiedade: a perda do real; o sentimento de que tudo é artificial, precário e “não chega lá”; de que a verdade da universidade não é a “minha” verdade, e que a “minha” não é de ninguém; e que a imagem que contemplamos o tempo todo talvez seja apenas a nossa própria imagem refletida num espelho. Temos, sim, momentos de esquecimento que nos ajudam a sobreviver, mas de tempos em tempos somos de novo assaltados por essa náusea tipicamente hipermoderna de que no fim não há ligação entre esperança e racionalidade. Ou você tem um, ou você tem o outro.

Esses momentos de náusea são, no entanto, momentos de realidade. Não que o mundo seja realmente assim, mas que essa condição escolhida por nós é insustentável. O homem vive em desespero porque insiste no caminho contraditório do humanismo secular, e mostra o seu desespero em cada salto irracional para encontrar significado, mas apenas sente o desespero quando vê em si a contradição. E a tarefa numero um do apologista cristão não seria provar a verdade do cristianimo, mas ajudar o homem hipermoderno a voltar para a realidade. E nesse ponto, a náusea hipermoderna é a melhor amiga do evangelista.

Ainda “L’Abri”

É aqui que a comunidade L’Abri se encaixa. Os estudantes brasileiros de Schaeffer – como os americanos – tendem a concebê-lo como sendo, basicamente, um apologista reformado, da escola pressuposicional, herdeiro de Cornelius Van Til, mas que introduziu modificações (distorções, para alguns) tentando integrar o pressuposicionalismo com elementos de apologética evidencialista tradicional.

Pessoalmente considero essa discussão fascinante e teologicamente importante, mas sempre me sinto incomodado com a falta de perspectiva com que ela é conduzida. Pois a apologética de Schaeffer não era fundamentalmente um sistema teológico-filosófico, mas um modo de vida, e por isso L’Abri era tão importante. A comunidade L’Abri (“o abrigo” em francês), fundada por Francis e sua esposa Edith Schaeffer na Suíça em 1955 é, por assim dizer, a “encarnação” de sua apologética, sendo impossível compreender um coisa sem a outra. E uma das idéias constantemente cultivadas em L’Abri para comunicar essa conexão é a de “realidade“.

Quando Schaeffer falava sobre “true truth” (verdade verdadeira) seu ponto não era apenas afirmar que existe verdade com “V” maiúsculo dentro do discurso racional, ou que o cristianismo seja verdadeiro porque é racional; a verdade para Schaeffer era antes de tudo a realidade das coisas. Por isso em L’Abri o termo “cosmovisão” (worldview) nunca teve um lugar excepcionalmente importante. O cristianismo, segundo Schaeffer, não era tão somente a melhor cosmovisão, ou o “sistema” verdadeiro, mas um retorno à realidade de Deus, do mundo e do homem. E realidade não é algo que se possa mostrar meramente dentro de um discurso filosófico ou apologético. Realidade é algo que precisa ser demonstrado. Um cristianismo autêntico e demonstrável na prática é o tema do best-seller “A Verdadeira Espiritualidade”, de Schaeffer, considerado pelos obreiros de L’Abri como a sua obra mais importante, superando todos os outros livros.

Aqui entra o que Os Guiness (ex-obreiro de L’Abri) descreveu como “o segredo de L’Abri”: Edith Schaeffer. Ela não aparece muito nos livros de Schaeffer, mas sem ela não haveria Schaeffer, nem livros, nem L’Abri. Sua combinação de hospitalidade, alegria, vitalidade na oração e trabalho duro faziam a alma do lugar e formaram o ethos das mulheres de L’Abri. E ela escrevia também; pouca gente sabe que seus diversos livros venderam quase um milhão de cópias! Edith nos deu uma das melhores descrições de L’Abri:

Aqueles de nós que desejam viver à luz da existência de Deus, e que desejam levar vidas equilibradas sobre a base da verdade quanto ao que existe e também de quem nós somos, devem estar conscientes de que a atmosfera e o ambiente ao nosso redor foi poluído, e que precisamos de algum tipo de discernimento, algo talvez como como uma ‘máscara de gás’, para peneirar idéias e compreensões, de modo a não ficarmos pervertidos ou sufocados (Duriez, Francis Schaeffer, p.133).

A a finalidade de L’Abri é a demonstração da realidade de Deus, em dois sentidos: primeiro, por uma vivência rica de significado, na qual verdade e esperança surjam reunidas. Por isso, mais do que um centro de estudos, L’Abri é um centro de hospitalidade, no qual a pessoa é recebida e considerada em sua integridade humana. Ao experimentar reflexão, diálogo, comida, trabalho, beleza, arte, descanso, oração no contexto da verdade cristã total, a pessoa pode reconhecer o significado de ser integralmente humano na presença de Deus; e ao mesmo tempo percebe o quão insuficientes são os caminhos do homem para obter essa experiência. Esse é o lado, digamos “humanizador” de L’Abri; Hans Rookmaaker dizia que Cristo não veio chamar homens para se tornarem cristãos, e sim para tornar os cristãos humanos.

Mas essa experiência integrada da nossa humanidade não pode ser descoberta sem Deus. Por isso a verdade e a oração são inseparáveis em L’Abri; como costumamos dizer, a própria existência de L’Abri depende da oração. Semanalmente todos os L’Abris realizam suas reuniões de oração apresentando pedidos específicos e aguardando respostas específicas – incluindo a própria manutenção de L’Abri, já que por princípio não temos um sistema de captação de recursos. A história de L’Abri está recheada de respostas de oração; e temos testemunhado disso no L’Abri Brasil, desde o início. Na primeira vez em que um representante de L’Abri internacional foi convidado para o Brasil não tínhamos um tostão para pagar as passagens. Mais tarde Andrew Fellows, atual diretor internacional, relatou que o convite fora uma resposta às orações dele mesmo, há anos com a mente voltada para o Brasil; mas eles não tinham um tostão para pagar as passagens. Na mesma semana, no entanto, sem saber de nada, alguém telefonou para ele oferecendo uma ajuda financeira com um propósito absolutamente atípico: “a expansão de L’Abri no mundo”.

Até hoje L’Abri mantém a fragilidade porque essa é a sua identidade. Schaeffer dizia que o L’Abri deve ser frágil o suficiente para fechar quando Deus não o quiser mais. Não é o tipo de trabalho que possa ou deva existir de forma automática, mesmo que sua essência seja perdida. Literalmente não sabemos se L’Abri Brasil vai durar mais um ano, e é assim que tem que ser; dependemos de Deus e das pessoas que ele levanta para apoiar o ministério.

E por isso L’Abri não acabou com a morte de Schaeffer; porque, literalmente, Deus quis que L’Abri existisse por mais algum tempo (não sabemos quanto), e mesmo quando não houver mais L’Abri, aquilo que a comunidade representa nos onze centros espalhados pelo mundo continua sendo absolutamente essencial: a demonstração da realidade de Deus. Essa demonstração tem o poder de trazer as pessoas de volta à realidade, da qual a sociedade hipermoderna sente uma sede imensa, mas da qual foge com todas as suas forças. Essa demonstração da realidade de Deus no pensamento, na espiritualidade, nos relacionamentos e na missão da igreja continua essencial, e continua um problema no cristianismo evangélico contemporâneo, assim como foi em 1955.

Ainda a “Verdade Verdadeira”

A perda da realidade está também por trás da atual crise evangélica. O próprio Francis Schaeffer teve uma grande crise de fé antes de iniciar o trabalho na década de 50, quando ainda era um missionário do Concílio Mudial de Igrejas Cristãs – uma organização fundamentalista que se opunha ao ecumênico “Concílio Mundial de Igrejas”. Schaffer chegou à conclusão de que o seu modo de pregar o evangelho, sem nenhum diálogo ou esforço de compreensão do homem moderno era totalmente falho; ele estava comunicando “verdade sem amor”. A existência de L’Abri se deve em grande medida à decisão de manter Verdade e Amor inseparavelmente conectados; podemos até discutir intensamente com um descrente ou com um crente em crise, mas tudo mundo se essa conversa honesta for feita dentro da sua casa, num contexto de hospitalidade, e sabendo que no outro dia nos veremos novamente no café da manhã.

Nunca, no entanto, Schaffer entendeu que o amor genuíno pudesse ser sustentado sem a “verdade verdadeira”, e isso sempre esteve no centro de sua agenda. Em uma conferência pouco antes de morrer ele foi perguntado sobre qual seria a razão para ser cristão, e sua resposta inequívoca foi: “há uma, e apenas uma única razão para ser cristão, e é a convicção de que essa é a verdade sobre o universo” (Duriez, Francis Schaeffer, p. 109). Na verdade ele dizia isso sempre, como testemunha Udo Middelmann e outros obreiros de L’Abri.

Schaeffer sabia o que dizia; seu caminho para a verdade não fora feito apenas de convicções aprendidas de outros. A crise de Schaeffer não foi causada apenas pela constatação de que o evangelho pregado pelos fundamentalistas carecia de amor e realidade, mas porque ele próprio sofreu dúvidas terríveis sobre a veracidade da fé cristã. E em L’Abri ele sempre deixou claro que a dúvida era uma coisa boa. Uma vez com dúvidas, precisamos ir até o fim com elas – não podemos simplesmente colocá-las de lado. Udo Middelmann observou mais de uma vez que Schaeffer não buscava apenas uma “perspectiva cristã”, mas a verdade, não a melhor teoria, mas um retorno à realidade das coisas, e isso implicava fazer perguntas honestas, duvidar de forma honesta, manter-se vulnerável. Mas sustentar tanto a crença como a dúvida apenas por razões políticas não passava, para ele, de hipocrisia.

Aparentemente uma parcela dos líderes evangélicos atuais se esqueceu da importância da verdade, escorregando para uma ou outra forma de pluralismo, ou negociando sínteses perigosas entre a fé evangélica e a mente secular. Um exemplo notável foi o recente movimento “emergente” (hoje quase submerso). Alguns representantes da igreja emergente, inclusive no Brasil, chegaram a comentar publicamente que o tipo de ênfase na “verdade” que Schaeffer destacava pertence a um momento passado, ainda moderno, o que revelou uma profunda incompreensão de Schaeffer; a situação descrita por ele como a “linha do desespero” é exatamente a antecipação do posmodernismo, que agora está na ordem do dia. A cobra que Schaeffer apontava já passou por nós, e vários de nós foram picados por ela. Apenas nesse sentido ele foi “ultrapassado”: é que suas profecias se realizaram.

Assim como o liberalismo teológico antigo, setores da neo-ortodoxia e teologias hermenêuticas contemporâneas como a de Paul Tillich, agora os próprios líderes evangélicos praticam abertamente o “misticismo semântico”, empregando os termos teológicos clássicos mas atribuindo significados corrompidos pelo humanismo secular ou completamente novos. Isso acontece claramente com muitos teólogos evangélicos que se formaram em ciências da religião nos últimos anos (sem preconceitos, já que essa é a minha formação também). E mesmo onde se alega a adesão ao cristianismo histórico, a teologia cristã é reduzida e vinculada tão somente a um conjunto minúsculo de significados, associado a experiências emocionais na adoração gospel, ou à responsabilidade social da igreja no âmbito de uma interpretação esquerdista da missão integral. Para muitos olhares atentos já temos sinais suficientes de que o movimento evangélico perdeu a única coisa que daria sentido e razão de ser a si mesmo: o próprio evangelho. O movimento vem sendo “esticado” entre o pluralismo teológico, a teologia da prosperidade, o êxodo dos sem-igreja (segundo o IBGE) e, agora, o crescente interesse por um retorno ao catolicismo romano.

Uma das maiores necessidades da igreja evangélica hoje é a sua própria reevangelização, mas para isso o próprio cristianismo precisa ser redescoberto em seu caráter de “verdade total”. É preciso não apenas recuperar a riqueza de significado da teologia protestante no contexto da piedade evangélica, mas também estabelecer uma clara conexão entre essa verdade e a realidade das coisas, desvelando seu sentido prático e existencial. Para tanto precisamos duvidar, tanto da crendice à direita (na “cultura Gospel” brasileira) como do cinismo à esquerda (do pensamento evangélico semi-liberal). Os líderes cristãos que desistem de ser evangélicos desistindo da “verdade doutrinária” e rindo da “ortodoxia” não são soluções, mas partes do problema.

Ainda a Unidade de Natureza e Graça

Segundo a citação que fizemos de Schaeffer, o cristianismo é uma verdade total. Não apenas a verdade sobre Deus e a salvação, mas a verdade sobre o mundo, o homem, a cultura, o passado e o futuro. E em seu melhor momento, a fé protestante manteve essa conexão na forma de uma unidade de Natureza e Graça. Com isso Schaeffer quis dizer que para os reformadores a Graça não era um mero complemento à uma “natureza” que seria basicamente boa e funcional. Sendo agostinianos nesse ponto, os reformadores reconheceram que a Queda afetou completamente a Natureza, e que mais que um complemento, a Graça deveria penetrar internamente e redimir toda a Natureza.

Em outras palavras, a mesma mensagem monergista de uma salvação gratuita e completa desdobrou-se em uma afirmação do valor da revelação bíblica para todos os campos da vida, de forma integral. E essa perspectiva foi perdida pelo movimento evangélico, principalmente a partir de suas raízes pietistas que, não surpreendentemente, apresentavam traços pelagianos. Já no século XIX a noção de uma separação entre a “vida religiosa” e a “vida secular” se tornara um lugar-comum no discurso evangélico. Esse dualismo se alojou na teologia, na espiritualidade, e na missiologia evangélica, sendo desafiado apenas depois da Segunda Grande Guerra, com figuras como Carl Henry, Francis Schaeffer, John Stott e, embora parcialmente, com o Pacto de Lausanne. Continuamos mergulhados até o pescoço nisso, aqui no Brasil. Há, aqui e ali, teólogos que tentam lidar com o problema, mas a massa dos crentes vive existências completamente compartimentadas, isolando “vida espiritual” e “vida secular”.

A experiência do cristianismo não como evasão, mas como retorno à realidade, depende desse cristianismo ser claramente ensinado e praticado como unidade de natureza e graça, com a graça penetrando todas as esferas da natureza. Isso envolve mais do que a “responsabilidade social da igreja”; envolve a vivência estética, a vida intelectual, a experiência comunitária, e também áreas sensíveis como economia e política. Mas para reconstruir essa relação integral com o mundo que o cristianismo exige, é preciso restaurar o evangelho da Graça em sua integridade, e para tanto será preciso um retorno ao protestantismo primitivo, com sua ênfase monergista na Graça salvadora de Deus. Esse era um ponto essencial, implícito no chamado profético à igreja evangélica em seu tempo; e embora com algum atraso, muitos agora reconhecem que essa é a solução. É o que vemos em iniciativas como Desiring God Ministries, The Gospel Coalition, Rede Atos 29, Editora e Conferência Fiel, e na multiplicação de jovens pastores reformados em diversas denominações evangélicas. Falta apenas os novos reformados compreenderem as implicações cosmológicas e culturais do monergismo, o que nem sempre acontece.

Profeta ou Erudito? Que tipo de pensador era Schaeffer?

Alguns leitores de Schaeffer reconhecem sem dificuldade a realização quase profética dos vaticínios de Schaeffer sobre o mundo atual, mas sentem-se incomodados com a ausência de um rigor maior em suas teses; o maior incômodo relaciona-se normalmente às suas críticas contra Kierkegaard, Hegel e Tomás de Aquino. Há quem descarte Schaeffer por conta delas.

A crítica à crítica de Schaeffer contra Kierkegaard é sem dúvida válida; não é totalmente claro que Kierkegaard tenha sido o responsável pelo “salto irracional” existencialista. Mas isso não importa tanto quando reconhecemos que o movimento existencialista realmente foi o primeiro a cruzar a “linha do desespero” que Schaeffer descreveu tão bem. Talvez o principal responsável pelo existencialismo tenha sido F. W. J. Schelling (como argumenta Paul Tillich); talvez Kierkegaard tenha sido lido já no contexto irracionalista do existencialismo do século XX e incorporado de forma errônea; ou tenha sido alvejado por associação, quando a neo-ortodoxia era atacada por separar o sentido da revelação dos fatos espaço-temporais. Mas que a “linha do desespero” estava lá, e que já estamos do outro lado dela, é simplesmente um fato. Hoje em L’Abri temos empregado Kierkegaard constantemente, e de forma criteriosa, ao lado de Schaeffer.

Quanto às alegações de Schaeffer de que Hegel teria sido o principal responsável pela negação da antítese entre verdade e falsidade, isso é também bastante plausível. A lógica dialética aplicada à história fez exatamente isso; e pensadores posmodernistas atuais como Richard Rorty reconhecem publicamente que o historicismo de Hegel foi uma das principais fontes de sua convicção de que não existe verdade dentro da história, mas apenas no processo histórico. O que falta para compreender Schaeffer aqui é o entendimento do motivo subjacente à dialética Hegeliana, que seria a busca de uma lógica capaz de superar o dualismo de Natureza e Liberdade cristalizado em Immanuel Kant – um dilema central da filosofia alemã, tanto idealista quanto materialista. Foi a contradição estrutural do pensamento moderno que levou à crise da racionalidade, e Hegel representou uma das estações dessa crise; o passo seguinte seria o existencialismo.

O mesmo vale para a suspeita de que Tomás de Aquino não seria responsável pelo domínio do dualismo de Natureza e Graça – a separação entre o campo da razão e do mundo “secular”, e o campo da fé e das coisas sobrenaturais. A comparação entre Schaeffer e Tomás mostra um desnível em articulação e erudição tão grande que é fácil suspeitar que Schaeffer pode ter sido simplista. Mas apenas se o leitor conhecer apenas Schaeffer e algo de Tomás de Aquino; pois a divergência entre a concepção protestante primitiva de Natureza e Graça e a concepção Tomista a respeito é uma observação teológica muito mais antiga que Schaeffer, e plenamente reconhecida na erudição protestante como estando ligada à divergente apropriação do agostinianismo. Os protestantes enfatizavam a prioridade da Graça de forma monergista, assim como a depravação total do homem na Queda, e isso os levava a suspeitar de qualquer autonomia da natureza – seja em termos de racionalidade filosófica, seja em termos de méritos para a salvação. E ainda que Tomás tenha apenas herdado esse dualismo, ninguém deu a ele uma forma mais filosoficamente bem articulada.

Algo mais deve ser dito aqui, no entanto; as teses de Schaeffer sobre o dualismo de Natureza e Graça e de Natureza e Liberdade em Kant, Hegel e Kierkegaard, expostas de forma resumida em “A Morte da Razão” tiveram sua origem em uma escola muito maior e erudita de pensadores cristãos ligados à tradição neocalvinista, do Estadista e Reformador holandês Abraham Kuyper. O segundo homem de L’Abri foi o filósofo e historiador da arte Hans Rookmaaker, que por sua vez foi discípulo do jurista e filósofo holandês Herman Dooyeweerd, e temos boas razões para acreditar que grande parte da leitura de Schaeffer sobre esses assuntos foi derivada de Dooyeweerd via Hans Rookmaaker (além, é claro, de Cornelius Van Til, professor de Schaeffer nos tempos de seminário).

Dooyeweerd era um erudito enciclopédico, membro da Academia Real Holandesa de Ciências e presidente da várias sociedades científicas em seu país; e ele descreveu tanto o dualismo tomista de Natureza e Graça como a origem e evolução do dualismo de Natureza e Liberdade em obras mais simples como “No Crepúsculo do Pensamento Ocidental” (que traduzimos para o português), em intermediárias, como “Roots of Western Culture” (Raízes da Cultura Ocidental) e nas mais eruditas como “A New Critique of Western Thought” (Uma Nova Crítica do Pensamento Ocidental) e “Reformation and Scholasticism in Philosophy” (Reforma e Escolasticismo na Filosofia). E além de Dooyeweerd, muitos outros eruditos protestantes da escola “Wetsidee” holandesa (a corrente filosófica fundada por Dooyeweerd) se debruçaram sobre o tema com conclusões semelhantes.

Ninguém deve pensar, portanto, que o ataque de Francis Schaeffer aos dualismos que corrompem a presença cristã no mundo podem ser ignorados apenas pela falta de notas de rodapé em seus livros; seus insights nesse campo se apóiam sobre os ombros de alguns gigantes da erudição cristã do século XX, e para uma compreensão mais profunda de Schaeffer é essencial consultar suas fontes. A minha própria consulta me tem feito confirmar a estrutura básica do argumento de Schaeffer.

Sem dúvida não se pode ler a obra de Schaeffer como se lê, por exemplo, Thomas Torrance, W. Pannenberg, Alister McGrath ou D. Carson, entre os teólogos atuais, ou Charles Taylor, Alvin Plantinga, Nicholas Wolterstorff ou Richard Swinburne, no caso dos filósofos cristãos atuais. Schaeffer não se encontra na lista dos grandes eruditos cristãos. Mas é um erro lê-lo assim; ele jamais reivindicou essa posição. O valor de Francis Schaeffer não está na meticulosidade de sua erudição, mas em seu extraordinário insight espiritual, muitas vezes comunicado de forma imprecisa e questionável, mas ainda assim, imensamente esclarecedor. Schaeffer é um mestre de espiritualidade com uma abordagem genuinamente pós-iluminista; talvez um dos poucos que temos assim. Ele escreve sobre espiritualidade cristã e evangelização genuína no mundo de hoje, em termos de como esse mundo funciona, confrontando a mente moderna/hipermoderna e mostrando com clareza a verdade do evangelho. Sob esse ponto de vista, continua sendo uma preciosidade.


REFERÊNCIAS

Colin Duriez, Francis Schaeffer: an authentic life. Nottingham: InterVarsity Press, 2008.
Bruce A. Little, Francis Schaeffer: a mind and heart for God. P&R Publishing, 2010.
Michael S. Hamilton, The Dissatisfaction of Francis Schaeffer. Christianity Today, March 2997. (Disponível em: http://www.christianitytoday.com/ct/1997/march3/7t322a.htm)